sexta-feira, 5 de novembro de 2010

Em busca de um Cerrado profundo


Era de manhãzinha quando acordei ao lado de mainha. O velho ônibus da viação “Paraíso” havia atolado mais uma vez no areião de silte, anunciando uma profundidade pedológica inimaginável para uma criança de apenas seis anos de idade. À beira de um riacho de águas cristalinas, os viajantes escovavam os dentes e abriam suas matulas repletas de farofas de galinha e de paçocas de carne, daquelas preparadas para durarem dias, caso fosse preciso... e sempre era!

Pela janela do ônibus vislumbrava o mundo que, até então, não passava da “Franciscona”, lugar-limite da cidade, onde há muito morava sozinha uma velha senhora de nome Francisca. No itinerário pelos Gerais, os pontos certos pós-Franciscona eram “Dedêgo” - um rancho-bar -, “Café-sem-troco” – literalmente sem troco -, e a famosa “Velha da Galinha” - onde poderíamos saborear um tempero raro preparado pela velha Galdina.

Numa aventura pelo meio dos Gerais do oeste baiano, eu era o filho mais novo que, pela primeira vez, viajava para tão longe agarrado à barra da saia da mãe. O destino era Goiânia, a capital que ficava do lado de lá, depois dos Gerais, da Serra Geral, depois de Posse, Alvorada, Formosa, Brasília, Anápolis... a capital que tinha a “Vila Nova” dos baianos.

O povo de cá, do “além São Francisco”, já era acostumado a enfrentar essa fronteira. Aliás, quem nasce em fronteira fala muitas línguas. Entende bem o que é ter que representar um canto dentro de outro. Os centenas de quilômetros que separam Correntina à fronteira com Goiás, já foram enfrentados a pé pelos andarilhos que buscavam emprego nos garimpos e construções das novas capitais do Planalto Central. Também já foram trafegados pelas tropas que levavam e traziam mantimentos e mercadorias, representando uma rede comercial que perpassava pelos portos de Juazeiro na Bahia e Pirapora em Minas Gerais. Sim, eram esses trilheiros cortados a facão, vestígios de picadas no mato, feitas por antigos vaqueiros, que ligavam o Centro-Oeste brasileiro ao mar chamado Rio São Francisco.

Ao ultrapassarmos o rito de passagem dos Gerais - a etapa imersa por uma paisagem cerradeira que, na época, já contrastava com as plantações de pinos, eucaliptos, soja e imensidões de monoculturas - chegávamos a Goiás. Mesmo pequena, percebia essa notória diferença do Território Goiano em relação ao nosso. O encontro com o “nordeste” desse estado, passando pelo Vão do Paraná, já revelava sinais de uma infra-estrutura mais generosa e de sinais mais precisos de modernização. Adentrando o eixo Brasília-Anápolis-Goiânia deparava-me, de fato, com cenários vislumbrados apenas pela TV. Outdoors, edifícios, presença marcante do concreto e da velocidade.

Essa primeira impressão, gravada em minha memória infantil, insiste em permanecer mesmo quando ando pelo centro anhanguerístico de Goiânia e descendo a Avenida Goiás avisto o setor Urias Magalhães onde meu avô derramou seu suor. Uma memória se renova quando ando pela Vila Nova e avisto o busto do conterrâneo Boaventura e quando passeio pelo Memorial do Cerrado, réplica de uma Correntina síntese arquitetônica do Cerrado colonial.

O que passei a compreender posteriormente, quando retornei a Goiânia aos 17 anos e cursando Geografia, foi que o Território passa por diversas variáveis que determinam seu uso e conseqüente atribuição. Poder, sociedade, territorialização, desterritorialização, reterritorialização, território usado... A marca do Território Goiano, hoje grafado pelo capital agropecuário e agroindustrial, repete-se onde há Cerrado para se des-Cerrar, para se en-Cerrar. Por isso, devemos ter olhos atentos para o sul do Maranhão, sul do Piauí e para o oeste da Bahia que se unem ao Território Cerradeiro/Goiano numa labuta de re-existência.

É nesse encontro com o rebolo de fronteiras, que penso o Cerrado. Ele, que é tratado pelo mestre Horieste Gomes como categoria chave para pensar o Território Goiano, creio ser um viés essencial para se pensar o Brasil como um projeto de vida. Eguimar Felício Chaveiro (2008, pg.95) nos fala: "O Cerrado, por essa compreensão, não está, portanto, apenas fora do corpo com classes de vegetação, com as classes de solo, com suas bacias hidrográficas, suas formas e estruturas de relevo. Está dentro, na pele, no cérebro. Ele existe em movimento e pode ser ação – e criação."

A indagação que nos é responsabilizada a partir do pensamento geográfico goiano é: Por onde anda o Cerrado profundo?


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Leandro Caetano

(Em 04/10/10 a partir da reflexão do Grupo de Estudos "Geografia, Sujeito e Existência - Dona Alzira" sobre o texto "A Nova Matriz Espacial do Território Goiano" de Horieste Gomes)